sábado, março 11, 2006

Excelente texto.Leiam


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Narcisismo só se cura pela dor

Chico Lopes
Escritor, autor de “Nó de sombras” (IMS/SP, 2000) e “Dobras da noite” (IMS/SP, 2004) – contos.


O velho Freud, tão citado e tão mal lido, bem sabia das coisas: postulava haver no ser humano um cerne irracional inatingível por qualquer lógica civilizada, lembrava os muitos danos causados à humanidade pelos indivíduos irremediavelmente narcisistas, esses para os quais as críticas inexistem, já que se julgam sempre perfeitos e inatacáveis (quem precisar saber mais, vá a dois textos básicos: “O mal-estar na civilização” e “O futuro de uma ilusão”, leituras das quais não se sai sem um abalo saudável).
Em conversa recente com uma amiga, concluíamos que o grande problema, com as pessoas imaturas, é o fato de não quererem de modo algum abrir mão de sua imaturidade, de gostarem do “vai da valsa” frívolo deste mundo e não perceberem – ou simplesmente não admitirem – que não há ato humano, social, que escape às suas infalíveis conseqüências. Lembrava ela que a idéia de “causa gerando efeito”, tão básica, é simplesmente posta de lado por quase todo mundo hoje em dia. O que se quer é diversão – o dia seguinte, o da ressaca, o do remorso, o da conta ou da intimação judicial debaixo da porta, não existe. Tem-se a impressão de que tudo é possível, tudo é permitido, que a mentira é puro charme, que se drogar, beber até arrebentar, fazer loucuras, difamar, repetir inverdades, enfim, ser um perfeito pulha, é coisa que pode ser confundida com aquela canalhice simpática que o brasileiro, infelizmente, cultiva muito. A simpatia do canalha conseguiu, alguma vez neste mundo, cancelar os efeitos nefastos do que fez? – Só se o prejudicado por seus atos for um perfeito masoquista…
Sem malogro, sem crescimento
Levando um pouco além aquela conversa, me dei conta de que a maior parte das pessoas que conheço reagiria mal demais a críticas, mesmo às mais sensatas, comedidas e respeitosas, a seu comportamento e às suas supostas grandes qualidades humanas, sociais, artísticas. Pensei em como essa coisa – o narcisismo – tão vital para a sustentação do amor-próprio, é também uma peste resistente. Freud, o velho Freud, está muito vivo, capaz de dar calafrios.
Pensei sobretudo em toda uma geração que vem sendo educada, pelo consumismo da televisão, pela literatura vagabunda de auto-ajuda, pelo cinema aviltado, a acreditar numa espécie de mágica, de solução para tudo. Essa mágica não é nem mais nem menos que o brado imbecil de “tô nem aí” gritado por todas as televisões e repetido como se fosse o supra-sumo da sabedoria. As fugas mais descaradas são prezadas como “lições de vida”.
Acredito que boa parte da responsabilidade disso cai nas mãos de teóricos de comportamento, sociólogos, políticos, gente de uma esquerdice leviana que insistiu demais nos tópicos da libertação social, sexual etc. nos anos 60 e 70, dando ao vitalismo e ao espontaneísmo uma importância exagerada. O que se fez, na verdade, foi abrir as comportas do Irracionalismo na cultura. No vale-tudo intelectual, filosófico, moral e o que mais fosse, obteve-se essa decadência mascarada de “autenticidade”. Uma educação permissiva demais e maus psicólogos que esqueceram Freud e voltaram-se exclusivamente para o bolso do cliente produziram narcisistas cada vez mais bélicos. A tara pelo bem-estar psicológico (o que implica numa enormidade de equívocos autotapeadores) levou tudo ao extremo: ninguém agüenta sofrer, ninguém quer ser frustrado. Indivíduos mal formados (ou simplesmente não orientados) moralmente acreditam sempre só ter direitos – negligenciam os deveres; acreditam que podem ferir sem ser feridos, pondo-se além de qualquer lei elementar; os que têm dinheiro acreditam-se protegidos por este, autorizados a qualquer coisa, desprezando as normas sociais como se inexistissem ou não chegassem a eles (infelizmente, como a corrupção é fortíssima no país, isso é grandemente facilitado e lhes dá essa pseudo-segurança e essa autoridade pseudo-lógica calcadas num evangelho da sordidez).
Há os que se acham predestinados a uma espécie de felicidade-cegueira eternamente irresponsável.
Mas, sem sofrimento, sem culpa – ou melhor, sem feridas em nosso orgulho – não há grandeza alguma. Nem há curas indolores – temos que crescer, a despeito de nós mesmos, nossas fantasias, nossas queridas ideologias meramente consoladoras, nossos Lexotans de cabeceira. A frustração é a pedra-de-toque de uma personalidade madura: tudo que aprendeu, ela deve ao fato de ter sido, muitas vezes, contrariada, fustigada, humilhada, injustiçada e o que mais se queira. “Um caráter forte se forja é na adversidade”, diziam os antigos, e achávamos isso tão careta! Mas é evidente como o sol: os duros golpes no narcisismo são os mais necessários.
Nossos pais, no seu decantado “autoritarismo”, na sua simplicidade tão desprezada, talvez estivessem nos dizendo era isso mesmo.
Se o mais precioso de nossos sonhos não envolve nenhuma pena, nenhum esforço, nenhum padecimento, acreditem: ele não vale nadíssima. E é de sonhos assim que as pessoas insistem em querer viver. Até acordarem e se darem conta de que o que gozavam tão irrefletidamente era um pesadelo.

Fonte: Enviado pelo autor, por e-mail, em 2/1/2005.
Esta página faz parte do sítio Leituras cotidianas – Vol. 2

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